Deixar de ir ao médico para consultas de rotina ou em caso de dor parece algo impensável. Entretanto, essa é a realidade de muitas pessoas surdas ou com deficiência auditiva.
Surda, a professora de Língua Brasileira de Sinais (Libras) Sylvia Grespan, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, assume que evita o consultório médico, por julgar que os profissionais não estão preparados para atendê-la da forma adequada. Ter de escrever ou depender de alguém que descreva ao médico os sintomas que ela sente e compartilhe partes relevantes do seu histórico de saúde é, para ela, um incômodo.
"Dizem que os surdos não procuram médico. Eu, Sylvia, não procuro, porque já sei que não vou ter uma comunicação efetiva. Então, não me sinto confortável, não tenho conforto linguístico de conversar com um médico", diz, acrescentando que pessoas já relataram a ela casos em que foram repreendidas pelo médico por utilizarem o celular para tentar melhorar a comunicação durante a consulta. "É nosso direito ter um atendimento eficaz e efetivo. Já estamos no século 21 e até hoje a sociedade não está pronta pra receber o surdo?"
De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 2,2 milhões de pessoas declararam ter deficiência auditiva. O grupo representa 1,1% da população brasileira.
Sylvia conta que, certa vez, ficou internada e se surpreendeu com as marcações no chão do hospital onde deu entrada. "Eu achei legal, porque era [um recurso] visual, e perguntei 'Por que é colorido'?. Me disseram: 'Porque a maioria nesse município é analfabeta'. Tá vendo? Eles nem pensaram no surdo, e sim nas pessoas que não sabem ler nem escrever."
A única exceção às experiências desagradáveis, afirma, ocorreu há dois anos, quando operou a vesícula e ficou na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], por um mês. Sem estar à vontade para pedir que sua mãe, já idosa, a acompanhasse, teve uma surpresa. "Eu me senti bem, porque ali todo mundo sabia Libras. Eu me senti muito feliz, porque eles eram meus ex-alunos."
Na avaliação da professora, que ministra aulas de Libras para alunos de fonoaudiologia e medicina e já formou, em três anos, 400 alunos, o curso não resolve o problema, isoladamente. "Não é só o curso de Libras que é importante. Também tem que saber como explicar para o surdo", ressalta.
De acordo com a médica veterinária Alyne Pacífico, o vocabulário de Libras na área de saúde ainda é muito recente e os profissionais devem sempre colocá-lo em prática para não perder o aprendizado. "Não basta o nível básico, porque é um idioma", afirma, destacando que, como qualquer idioma, a Libras está sujeita a mudanças constantes.
Também professora de Libras, Alyne fez um levantamento com idosos surdos sobre a maior dificuldade enfrentada na área de comunicação. O resultado, obtido em 2016 quando ela cursava o mestrado em gerontologia, foi unânime: o atendimento na área de saúde.
"Fiz uma entrevista perguntando quais eram os principais problemas com relação a saúde, educação e inclusão social e 100% das pessoas consultadas disseram que o maior problema era na saúde, porque na educação têm intérpretes, auxiliares, mas na saúde dependiam 100% de uma pessoa intérprete ou de alguém da família", comenta.
Alyne acrescenta que, para ela, o Sistema Único de Saúde "está à frente" quanto à qualidade do serviço oferecido a esse público. "Os órgãos públicos estão buscando a capacitação [em Libras]", destaca.
Políticas públicas
A fonoaudióloga Beatriz de Castro, da Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação (Derdic), menciona que 30% das crianças surdas ou com deficiência auditiva têm outras demandas de saúde, além da relacionada à audição. Além disso, 98% dos surdos têm pais ouvintes, o que, geralmente, faz com que não tenham contato com pessoas fluentes em Libras.
O contexto, avalia a fonoaudióloga, requer uma política pública "múltipla". "Até que ponto a gente consegue que eles fiquem fluentes tão rápido quanto precisam, se nunca conviveram na comunidade? Até que ponto tenho comunidades disponíveis, nesse Brasil enorme, que tenham interlocutores que vão fazer Libras? Então, é difícil de um jeito ou do outro. Portanto, estratégias inclusivas são uma necessidade em políticas públicas que atendam a essa diversidade", afirma.
Com vasta vivência ao lado de surtos, Beatriz afirma que essa população é “submestimada intelectualmente". "A pessoa, porque se trata de um surdo, começa a falar devagar e fica com pena. Ele é subestimado intelectualmente, porque a comunicação é um valor muito importante para o ser humano. Quando tem qualquer desvio de comunicação, imediatamente a pessoa é subestimada, do ponto de vista cognitivo.”
Violação de direitos
Com frequência, afirma Alyne Pacífico, as pessoas acometidas por surdez ou deficiência auditiva acabam sendo privadas de informações fundamentais a respeito do seu estado de saúde. Também é comum que sejam forçadas a concordar com a administração de medicamentos, sem que saibam exatamente qual substância está sendo prescrita ou até mesmo injetada em seus corpos.
Em muitas ocasiões, não conseguem ter a oportunidade de expressar os sintomas físicos que sentem, condição que, frisa Alyne, os torna "reféns". O debate, portanto, permeia o campo da ética.
Quando se trata de saúde mental, a situação é idêntica. De acordo com ela, muitas pessoas com surdez ou deficiência auditiva procuram um psicólogo depois de desenvolverem depressão causada pelo isolamento social. Não raro, há falta de comunicação dentro da própria casa em que vivem. "Hoje em dia, se tivermos cinco psicólogos formados em Libras, em Brasília, é muito. E, se acharmos um, ele ainda cobra um absurdo pela consulta, porque é um profissional muito requisitado. Às vezes, também tem a questão do sigilo. Entra um intérprete e o surdo não quer abrir o caso dele com alguém que chegou ali."
Um caso que ilustra bem as implicações da falta de preparo no atendimento de saúde é relatado pela professora Sylvia Grespan. "Já tive experiências com surdo psicopata [com transtorno de personalidade dissocial psicopática], que agredia e tentou se matar. A intérprete não conseguia interpretar, ela começou a chorar, começou a ficar angustiada naquele atendimento, porque ela não estava acostumada."
Telemedicina e aplicativos
Quando o tema é tecnologia em prol das pessoas surdas ou com deficiência auditiva, as opiniões se dividem. Ao contrário de Alyne, Sylvia afirma que os aplicativos de celular e as vídeo-chamadas não propiciam um atendimento apropriado. A pedagoga argumenta que esse modelo traz consigo um ônus, que é o pagamento por um serviço de internet que permita que as consultas por vídeo e os aplicativos rodem bem.
Sylvia lista algumas medidas que considera fundamentais: a oferta de Libras como disciplina obrigatória nos cursos da área de saúde, com uma carga horária extensa, "e não somente de 40 horas"; a contratação de intérpretes em hospitais; e o lançamento de todas as páginas online do SUS em Libras, permitindo que o conteúdo chegue a todos.
A professora defende ainda que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) oferte pacotes de internet para pessoas surdas ou com deficiência auditiva com preços mais acessíveis.
Agência EBC