"As pessoas, quando se enxergaram sozinhas, não conseguiram esconder o sofrimento'
28/09/2022 20:56 em Variadas

Prof. Lauro Demenech, da FURG, liderou a publicação de um artigo sobre as consequências emocionais da pandemia do coronavírus

Considerada a maior emergência de saúde pública em décadas, a pandemia do coronavírus trouxe, além de preocupações quanto à saúde física, inquietações acerca do sofrimento psicológico - que pode ser vivido tanto pela população geral quanto pelos profissionais da saúde envolvidos.

Com o objetivo de sistematizar conhecimentos e oferecer subsídios para a prática de psicólogas/os, um grupo de docentes de cinco universidades se reuniu para produzir o artigo "Risco de suicídio entre graduandos no Brasil nos períodos pré e durante pandemia de Covid-19: Resultados do estudo nacional Sabes-Grad". O estudo é assinado por Lauro Demenech, Lucas Neiva-Silva e Samuel Dumith (FURG), Sandra Brignol (Universidade Federal Fluminense), Samira Marcon (Universidade Federal do Mato Grosso), Sônia Maria Lemos (Universidade do Estado do Amazonas) e Rafael Tassitano (Universidade Federal Rural de Pernambuco) e foi publicado recentemente na revista eletrônica Psychological Medicine, que está entre as três mais importantes da psicologia clínica no mundo. 

O artigo resultou em um relatório extenso sobre o risco de suicídio em todas as regiões do país. Foi realizada a medição da proporção de pessoas no período pré-pandemia e durante a pandemia, que esteve em um risco elevado de suicídio. Na FURG, houve aumento de cerca de 11% para 17% no período - especialmente entre pessoas em maior vulnerabilidade econômica e entre mulheres. 

Em um cenário mais amplo, a maior probabilidade de apresentar risco de suicídio em todas as regiões do país foi observada entre mulheres; indivíduos com orientação homo/bi/pansexual; pessoas mais jovens, com cor de pele preta, parda ou outra; mais pobres, que tiveram suas rendas reduzidas ou ficaram sem rendimentos durante a pandemia; que estavam com insegurança alimentar; que apresentavam insatisfação com seus cursos de graduação; que apresentavam fatores de risco para agravamento para Covid-19; que estavam preocupadas com atraso na sua formação devido à pandemia; aqueles que perderam alguma pessoa próxima para o coronavírus; e aqueles que relataram ter muito medo da Covid-19. Ao total, quase 7 mil alunos e alunas participaram da pesquisa. 

Professor do Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI) da FURG, Lauro Demenech é também autor de "A Saúde do Estudante Universitário", livro lançado em 2021 pela Edgraf, onde mapeou indicadores de saúde dos estudantes de graduação da universidade, com a colaboração de mais de 1,4 mil alunos. Nesta entrevista ao furg.br, o psicólogo relata os caminhos para lidar com as consequências emocionais da pandemia, além de ressaltar a importância de se buscar ajuda profissional, tanto para tratar de doenças já instaladas como para atuar na sua prevenção. 


Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o primeiro ano da pandemia de Covid-19 desencadeou um aumento de 25% na prevalência de ansiedade e depressão em todo o mundo. Como identificar quadros dessas doenças? Quais seriam os principais sintomas?

Para identificar quadros de ansiedade e depressão, o primeiro fator a se considerar é que sentir ansiedade e ter um algum grau de tristeza, mesmo que profundo, não necessariamente se configura um transtorno. Então é natural, especialmente no momento de calamidade pública, de urgência de saúde pública com a pandemia, as pessoas desenvolverem níveis mais elevados de ansiedade, preocupação e tristeza mais profunda e até luto pelas perdas materiais e imateriais; os laços das pessoas, enfim. Agora, um indicador interessante para pensar já no adoecimento psicológico tem a ver com os prejuízos funcionais que a pessoa tem em função desses sintomas de ansiedade, como medo severo ou uma preocupação excessiva e fora de contexto. Quando isso começa a prejudicar ambientes como a vida laboral ou acadêmica, ou as relações, já começa a ser um primeiro indicador de uma possibilidade de um nível mais patológico de transtorno.

Ou no caso da depressão, por exemplo, quando a pessoa vai perdendo a vontade de fazer coisas que geralmente lhe causavam prazer, ou de encontrar pessoas que costumavam ser agradáveis de conviver, passando a se afastar, se isolar e sentir-se um pouco desesperançosa em relação ao futuro; de perder um pouco a vontade de viver. Essa perda da vontade não é não é só um sentimento de tristeza. As pessoas confundem depressão com tristeza; ela tem mais a ver com o sentimento de vazio, de esvaziamento, e que pode ter também profunda tristeza.

Mas, de forma muito simples, essa observação de ter um prejuízo funcional normalmente é um indicador de que pode haver um agravamento importante nessas situações.


Ainda de acordo com a OMS, os quadros de depressão atingiram, em média, 40% a mais mulheres do que homens. Que fatores podem ter influenciado nesse índice?

Nesta pesquisa que fizemos com estudantes de graduação do Brasil inteiro, observamos que houve um aumento no risco de suicídio. Houve também um aumento na prevalente depressão entre estudantes durante a pandemia. E observamos essa probabilidade maior de risco de suicídio entre as mulheres.

Antes da pandemia, já era estabelecido que mulheres apresentam taxas mais elevadas de depressão e de transtornos mentais em geral, como transtornos de humor, de ansiedade etc. E tem algumas explicações para elas: algumas são mais biologicistas, que carregam de fato uma probabilidade maior em função de aspectos genéticos e hormonais, mais especialmente no contexto brasileiro, que tem uma estrutura bastante patriarcal e de certa forma opressora em relação à mulher. Muitas vezes uma parcela desse aumento de depressão entre mulheres pode ser atribuída às condições sociais em que elas vivem. Por exemplo, é bastante comum que uma mulher, especificamente uma estudante, acumule uma jornada de trabalho em que, além de estudar, tenha que trabalhar e ainda cuidar dos afazeres de casa. Esse desgaste, esse sofrimento passam às vezes por situações de violência, seja ela uma violência física, verbal ou sexual.

Então todos esses fatores que contribuem para a vulnerabilidade da mulher também contribuem com que elas tenham maior taxa de transtorno mental, incluindo a depressão. Claro que existe um fator genético e hormonal que também contribui, então seria a união desses fatores todos. Mas no contexto do Brasil, sem dúvida, o aspecto social é muito predominante.


Existe ainda um estigma social, especialmente entre homens, para procurar ajuda psicológica. De que maneira é possível reverter esse cenário?

Na verdade, está havendo uma desestigmatização gradual. E acho que a pandemia pôs isso em xeque, e colocou a psicologia muito em voga porque as pessoas, quando se enxergaram sozinhas, não conseguiram esconder o sofrimento. Então houve um aumento muito grande na procura por ajuda. E isso talvez vá um pouco ao encontro do que eu falei da estrutura da sociedade. No mundo, de forma geral, também acontece, mas a gente considera o nosso contexto latino-americano, onde existe esse estigma do homem provedor, que não sofre, porque sofrer é "coisa de mulher". E não procurar ajuda tem bastante a ver com esse estigma.

Porém, isso tem diminuído especialmente entre as gerações mais jovens, que têm passado por cima de muitos desses tabus e preconceitos e decidido não sofrer sozinhas, ao pedir ajuda. Tem aumentado a procura entre homens, mas ela ainda é menor, com certeza. De forma geral, nas condições médicas como um todo, não só as psicológicas, as mulheres cuidam mais da saúde. Elas procuram mais ajuda médica e psicológica.

Sempre tem a possibilidade de reverter isso, ao fazer campanhas de prevenção e promoção. E essa conscientização passa bastante não só por uma palavra; as palavras até convencem, mas o testemunho converte.

É interessante ter mais momentos onde se possa falar abertamente, por exemplo, sobre sofrimento e fracasso. É muito comum, especialmente no meio acadêmico, as pessoas contabilizarem os seus sucessos, divulgarem quando as coisas dão certo. Mas é muito difícil comentarem quando as coisas dão errado. Eu costumo falar sobre os vários insucessos que eu cometo na carreira acadêmica. Por exemplo, tenho artigos submetidos que que foram recusados mais de dez vezes. Até ter um que emplaca muito bem como esse último.

Então acho que, quando buscarmos lidar melhor com a dualidade entre a felicidade e a tristeza, que são sentimentos normais do ser humano, conseguiremos reduzir esses estigmas. Na condição de psicólogo e agora como professor, dar o exemplo também é muito importante - sempre que tenho a oportunidade, eu comento que faço terapia. É importante criar um espaço cada vez mais acolhedor e menos julgativo em relação às pessoas que procuram ajuda. Seria muito bom se todas as pessoas tivessem condições de fazer psicoterapia.


Por que mulheres tentam mais, e homens são as principais vítimas de suicídio?

De forma geral, como eu comentei antes, a mulheres procuram mais ajuda. Existe um perfil comportamental mais prevalente de buscar consulta médica, de fazer check-ups etc, do que entre homens. E isso se encontra também nas questões de saúde mental.

Então se por um lado nós temos maior prevalência de risco de suicídio entre as mulheres, os dados de fato são que as tentativas que resultam em suicídio são maiores entre os homens. São situações que vão passando negligenciadas, pois eles tentam esconder seus problemas e não procuram ajuda. Os dados apontam que, normalmente, os homens procuram formas mais letais e agressivas de suicídio, com poucas chances de reversão durante o ato.


De que maneira as pessoas que convivem com parceiros, parentes ou amigos próximos com depressão podem acolher esses indivíduos, ao lidarem juntos com problemas emocionais? 

Todos nós temos dificuldade em lidar com o desconforto, não só o nosso, mas aquele que pessoas de quem gostamos, que vivem conosco, podem estar passando também. A gente pode até, de certa forma, negligenciar, saber que "alguma coisa não está legal, mas também não vou tocar nisso". É difícil para todos, inclusive para mim e meus colegas psicólogos.

Em geral, um bom caminho é abrir um canal de comunicação. Fazer uma pergunta do tipo "posso estar enganado, mas estou sentindo que tem alguma coisa que não está legal contigo". Talvez a pessoa vá se esquivar, enfim, mas como falei antes, a palavra convence e o testemunho converte. Além de falar sobre, é importante mostrar-se aberto, porque talvez numa primeira conversa isso não surja tão naturalmente. Mas se a pessoa perceber que você está ali próximo e continente, disponível de verdade, não só por fala, não só pelo jeito de falar, existe uma possibilidade de abrir um canal para, de fato, a pessoa poder compartilhar o sofrimento.

Não existe uma solução fácil, simples. Uma primeira coisa importante é tentar ouvir sem necessariamente ter que dar uma resposta. Isso é às vezes até um pouco contra-intuitivo para o ser humano, ouvir sem ter que dar uma resposta. Mas às vezes essa pessoa está pensando mesmo em ser ouvida, e para quem está ali ouvindo é importante conseguir escutar e digerir, e não necessariamente ter que dar um retorno. Ela pode se colocar à disposição para ouvir e, quando precisar, tomar as medidas que forem necessárias de acompanhar para buscar uma ajuda, saber de que forma a pessoa que está se sentindo mal percebe que tu podes ajudar.

As pessoas que estão sentindo depressão podem buscar afastar as pessoas de que elas gostam. Elas se sentem esvaziadas, querem ficar mais sozinhas e isso vai retroalimentando a depressão. É importante não se deixar ser afastado. Tentar se manter perto, respeitando o limite e o espaço, mas tentar criar um ambiente para a escuta. Há muitos casos de pessoas que estão em situações difíceis de depressão optarem por se afastar de outros à sua volta para que elas já estejam distantes se, por ventura, tomem a decisão de suicidar-se. Normalmente há um cuidado dessas pessoas em como os que vão ficar irão receber isso. Se há um afastamento que não tem um sentido ou justificativa, pode ser um sinal de estar em alerta e tentar se manter próximo.


Medo de ser infectado pelo vírus, longos períodos sem sair de casa, preocupação com familiares e amigos: além da ansiedade e depressão, a pandemia trouxe também o aumento de doenças como síndrome do pânico e fobia social. Como lidar com as frustrações geradas pelo impacto da Covid-19 e procurar o tratamento adequado?

Nós, que sobrevivemos à pandemia - especialmente aqueles que não tiveram grandes sequelas, como perdas importantes - estamos felizes por estar sem máscara, por estar de volta ao nosso espaço. Talvez para algumas pessoas que tiveram problemas graves com Covid, estiveram internadas, na UTI, ou perderam pessoas queridas, esse período pode ser até muito agressivo e incompreensível. Imagine para alguém que perdeu para a Covid um pai, uma mãe, um filho, o amor da vida, enfim, como é ver uma multidão sem máscara, sabe? Foi muito grave o que a gente passou e ainda está passando, e as pessoas que foram mais impactadas por isso são uma marca indelével nessa situação.

Mas, de forma geral, aqueles que também foram indiretamente impactados também podem ter desenvolvido transtornos mentais vinculados à ansiedade. Esta se caracteriza por uma preocupação com uma possível ameaça; de certa forma toda ansiedade tem esse núcleo comum. Então, nós tivemos uma situação muito grave que era uma preocupação real, e que a gente conseguiu, por meio da ciência, da vacinação, das medidas de distanciamento, reverter num período não tão curto de tempo. Então o mundo real confluiu com as nossas preocupações mais reais, onde, de repente, uma pessoa que tinha uma fobia muito grande de germes viu ela confirmada. Pessoas que não tinham esse tipo de fobia puderam desenvolvê-la e mantêm ela até hoje.

A questão da fobia social é muito importante: pessoas que já tinham essa fobia social viram uma situação onde elas tinham mesmo que se isolar. Isso deu algum alento ao sofrimento do transtorno, mas também o intensificou. E ao mesmo tempo pessoas que tinham ou não uma predisposição para esse tipo de transtorno podem tê-lo desenvolvido, e podem ter muita dificuldade de estar em grandes grupos.

É importante identificar prejuízos em função de algum tipo desses sintomas que são difíceis de explicar - conviver bem com as pessoas, ter um impacto laboral, acadêmico, de lazer, enfim. É preciso entender que, se eu não consigo adequar-me à nova situação, eu posso decidir por me manter usando máscara sempre em locais públicos, isso é uma decisão saudável, não tem problema nenhum, alguns países inclusive têm essa cultura. Mas é importante observar se há esse prejuízo funcional em relação a outros ambientes. E se sim, procurar ajuda, conversar, e procurar os canais de acesso ao psicólogo, seja por via privada ou pública, ou algum outro profissional de saúde que possa dar alguma orientação. E as questões de ansiedade, elas em geral têm um bom prognóstico no campo psicológico, quando há tratamento.

Assessoria  - FURG

 

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